Coberturas de desastres naturais, um retrato desigual do Brasil
Grande mídia ignora tragédias no Nordeste e no Norte do país
Olá, Cajus! Como estão suportando esse calor do capiroto? Eu, Nayara Felizardo, estou aqui bebendo muita água para não desidratar por causa das catastróficas mudanças climáticas.
Sou uma das cofundadoras da Cajueira e assino essa edição para conversar com vocês sobre a atenção que a grande mídia dá a desastres naturais no Nordeste. Vou tomar como exemplo as diferenças de cobertura das enchentes no Rio Grande Sul, este mês, e em Pernambuco, em maio de 2022. Elas são enormes e posso provar com dados.
Antes, preciso dizer que minha intenção não é fazer uma rinha de tragédia. Como bem disse Fabiana Moraes, professora e uma das maiores pensadoras do jornalismo que temos hoje, "não é possível medir dores e perdas, onde quer que elas aconteçam. Mas podemos medir e pensar coberturas". Foi exatamente isso que eu fiz.
Analisei 20 edições do Jornal Hoje, um dos telejornais da Rede Globo, que é transmitido em cadeia nacional e costuma cobrir mais pautas fora do Sudeste do que outros programas da mesma emissora. A diferença entre a cobertura das duas tragédias é inegável. Em relação às enchentes no Rio Grande Sul, que resultaram em 48 mortes, observei dez edições seguidas do programa, a partir do dia 5 de setembro, quando o desastre começou a ser repercutido nacionalmente. Quanto às enchentes em Pernambuco, que resultaram em 133 mortes no ano passado, analisei dez edições seguidas do programa, a partir do dia 25 de maio de 2022, primeira vez em que o assunto foi tratado no jornal.
Embora não tenha havido diferença significativa na soma do tempo de cobertura, no período analisado – cerca de um minuto a menos para a tragédia de Pernambuco –, vale destacar que os desastres em Pernambuco só receberam maior destaque na edição do Jornal Hoje a partir do quarto dia de enchentes, quando já havia 30 mortos. Nos dois primeiros, a tragédia foi abordada apenas quando o programa estava chegando ao fim. O tempo das reportagens, nos três primeiros dias de cobertura, variou de apenas 37 segundos até pouco mais de 5 minutos.
As enchentes no Rio Grande Sul foram destaque na primeira chamada da escalada do jornal desde o primeiro dia. Havia dois repórteres ao vivo e o quadro de previsão do tempo teve grande destaque para as cidades afetadas. Naquele momento, foram contabilizadas sete mortes. Nos quatro primeiros dias de cobertura, período em que 41 pessoas morreram no Rio Grande do Sul, as reportagens tinham até três repórteres ao vivo, eram as primeiras na edição do jornal e duravam de quase 9 a 16 minutos.
O quadro de previsão do tempo é um detalhe à parte. Ele informava em todas as edições quando e quanto iria chover no estado. No segundo dia da cobertura, o quadro teve mais de quatro minutos dedicados à previsão em municípios específicos.
Os moradores das cidades pernambucanas não receberam informações como essas em oito das 10 edições analisadas. Como também estava chovendo em outros estados do Nordeste, embora com menos intensidade que em Pernambuco, o quadro de previsão do tempo destacava toda a região. Em ao menos duas edições, o Norte entrou no combo: "temporais podem atingir parte do Nordeste e do Norte do Brasil", dizia a chamada em 4 de junho de 2022. Para quem mora em Camaragibe, por exemplo, um dos municípios mais afetados pelas enchentes em Pernambuco, a informação foi insuficiente. Naquela data, as chuvas tinham provocado 128 mortes no estado.
Reitero que não estou minimizando a tragédia no Rio do Grande do Sul, nem reclamando da atenção dada pelo telejornal à situação. É impossível fazer isso, depois das imagens que vimos nos últimos dias e de acompanhar o desespero das famílias que perderam tudo, inclusive pessoas amadas. Meu levantamento não tem pretensão de ser uma análise definitiva, nem a única leitura possível. Nem se trata de cobrar menor cobertura para esse caso, mas de refletir sobre como, constantemente, tragédias que acontecem no Norte e no Nordeste não recebem atenção devida da grande mídia.
A reivindicação é apenas por uma cobertura descentralizada do Brasil, que dê atenção proporcional ao que acontece também nos estados do Nordeste. Essa é uma das mais importantes missões da Cajueira e da qual não abrimos mão.
Vou ficando por aqui. Deixo vocês como uma cantiga interpretada por Luiz Gonzaga. Ela sempre me vem à mente quando vejo notícias de enchentes. A "Súplica Cearence", lançada em 1979, já antecipava as tristes e recorrentes cheias, agravadas pelas mudanças climáticas.
Oh! Deus, perdoe este pobre coitado
Que de joelhos rezou um bocado
Pedindo pra chuva cair sem parar
Oh! Deus, será que o senhor se zangou
E só por isso o sol arretirou
Fazendo cair toda a chuva que há
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sempre necessário retomar essa conversa!