🎉1 ano de Cajueira | A reinvenção do Nordeste - entrevista com Durval Muniz
Vem comemorar em uma edição especial com a gente!
Opa, tudo massa contigo?
Eita que a gente nem pensava que ia chegar até aqui, mas chegamos! Hoje (25/11) é o aniversário de um ano da Cajueira. Já pensasse como o tempo passa rápido? Estamos muito felizes e queremos agradecer às nossas leitoras, leitores, apoiadoras e apoiadores. Também queremos dividir a alegria da data com os veículos que nos inspiram e fazem a diferença, produzindo jornalismo e conteúdos de qualidade nos estados do Nordeste. Tudo o que fizemos até aqui só foi possível graças ao apoio de vocês. Muito obrigada!
Como toda boa sagitariana gosta de festa, esta edição tá bem especial, em clima de comemoração. Entrevistamos o professor e historiador paraibano Durval Muniz, autor do livro “A invenção do Nordeste e outras artes”. No livro, Durval explica como o Nordeste foi uma criação das elites agrárias e como o imaginário nacional sobre a região, associada à seca e à miséria, foi sendo cristalizado por produções culturais e pela mídia.
Esse livro de Durval é tão importante que já inspirou peça de teatro, músicas, artistas e, como tu já deve imaginar, está entre os pontos de partida da nossa Cajueira. Na entrevista com a gente, Durval diz que “a forma de combater o preconceito e o estereótipo é o conhecimento”, e é exatamente nisso que a gente se firma.
Nascemos como a primeira curadoria de conteúdos do jornalismo independente nos estados do Nordeste. Nossas edições quinzenais - 28 até agora - afirmam a qualidade e relevância dos conteúdos nordestinos em um terreno antes dominado pelo eixo Rio - São Paulo - Brasília: as newsletters sobre jornalismo.
Hoje, nós chegamos nos e-mails de quase 1,8 mil pessoas inscritas que cansaram de consumir notícias apenas sobre uma parte do Brasil. Trazemos a diversidade e a pluralidade das vozes nordestinas e provamos por A+B que as pautas dos estados do Nordeste não são regionais, são nacionais. Nossos conteúdos também brotam nas redes sociais, provocando uma nova forma de pensar o Nordeste. Já somos 1,2K no Instagram e 2,4K no Twitter. Aliás, amamos as mensagens de carinho que as cajuzinhas, cajuzinhos e cajuzinhes mandam pra gente por lá.
Em apenas um ano de vida, já conquistamos muita coisa, inclusive um financiamento do Google (olha ela!) junto com uma rede potente de dez organizações nordestinas que vão produzir conteúdos acessíveis para pessoas cegas e de baixa visão. Arretado, né? E isso é apenas o começo, visse? Estamos cheias de ideias para os próximos anos de vida. Já temos apoiadoras e apoiadores na nossa campanha de financiamento recorrente, que está ajudando a gente a acreditar no nosso trabalho e almeja crescer no Apoia.se . Vem fazer parte da nossa colheita, contribuindo mensalmente! Ei, também rola de mandar um presentinho de aniversário no PIX (cajueira.ne@gmail.com) , além indicar a gente por aí ;)
Agora sirva-se com um pedaço de bolo, um suco de caju e essa entrevista com o professor Durval Muniz.
Um cheiro!
No seu livro “A invenção do Nordeste e outras artes” você explica que a região Nordeste foi uma invenção para manter privilégios de elites. Como essa ideia foi e ainda é sustentada por imagens estereotipadas de uma identidade nordestina na mídia e em produções culturais?
Quando Gilberto Freyre (escritor) cria o Centro Regionalista do Nordeste, em 1920, ele reúne intelectuais e políticos de vários estados. Ele começa a elaborar uma memória, uma história para esse conceito que vinha circulando desde o final da década de 10, vinculado às chamadas 'obras contra as secas', criadas pelo governo Epitácio Pessoa, que define a área de realização das obras como Nordeste. Inicialmente essa palavra tinha apenas o sentido de uma área entre Norte e Leste. Não tinha ainda um sentido identitário.
Em 1925, Gilberto Freyre encarta, no jornal, no dia do aniversário do Diário de Pernambuco, um “Livro do Nordeste” para tratar do que seria os cem últimos anos do Nordeste - ele vai dotar o Nordeste de um passado com elementos que vão ser articulados dentro da identidade nordestina, como o desafio de cantadores, a renda de bilro. Ou seja, você vai construindo uma série de sentidos e significados para a palavra Nordeste. A mídia tem uma importância na veiculação desse Nordeste, que é uma ideia que vai surgir entre as elites políticas e intelectuais, que são justamente os proprietários das mídias. O Diario de Pernambuco era vinculado aos interesses agrários da oligarquia açucareira.
Por que essa elite tinha interesse na criação do Nordeste?
Desde o final do século XVIII, com a mineração e depois com o café, a economia brasileira começa a se deslocar pro Sul. E as elites dessa área - que foi o centro da economia da colônia durante muito tempo -, quando perdem o controle da nação, inventam uma região para se entrincheirar e defender os seus interesses.
Existia uma rede que rapidamente fez circular essa ideia do Nordeste. Era uma elite intelectual que dominava todos os meios de circulação: livros, produções culturais, pintura, teatro, cinema, literatura e os jornais.
O Nordeste é pensado a partir dessa saudade, desse tempo de glória dessas elites. O Nordeste é um espaço saudoso nostálgico da escravidão, da casa grande, duma sociedade patriarcal, de uma sociedade machista, masculina, de uma sociedade hierárquica.
O Nordeste começou como lugar de saudade e também como esse lugar de fome, de escassez, de miséria, de pobreza. São imagens que foram cristalizadas pela própria mídia, pelos jornais da região concentrada, que é o Sul e o Sudeste do país.
A fome voltou a se agravar no Brasil enquanto programas sociais estão sendo esvaziados. Como o jornalismo e a mídia podem denunciar a miséria que de fato existem em alguns municípios nordestinos, inclusive nas regiões rurais, sem reproduzir velhos estigmas relacionados à região?
Não é reproduzir simplesmente as imagens da fome, mas é explicar de onde vem a fome, o que provoca a fome. Não é uma coisa natural. A fome era associada à seca, era naturalizada. As elites nordestinas descobriram a seca como um argumento político fundamental. A grande seca de 1877-1879 não tem nada de diferente das secas anteriores, mas como as secas anteriores só mataram homens pobres e escravos, elas não eram um problema. A seca se torna um problema quando encontram a região em situação econômica já em crise muito profunda e as próprias elites são atingidas. Perdem o que tem. Ficam na miséria. É portanto a primeira seca que o estado intervém, até esse momento as pessoas eram atendidas pela caridade particular, era basicamente um trabalho da igreja.
A caridade é uma coisa católica, né? E que é ótimo porque alivia consciências. Agora, por exemplo, está todo mundo podendo aliviar sua consciência porque você pode dar um prato de comida no portão para a pessoa que passa e pede. A caridade é o oposto da cidadania, da noção de direitos de uma sociedade de direitos, porque a caridade não reconhece que o outro tem o mesmo direito que você.
É preciso denunciar. A fome está espalhada no Brasil inteiro. As ruas de São Paulo e do Rio estão atulhadas de gente morando na rua. Isso é uma realidade nacional, não é exclusivo no Nordeste.
É preciso evidentemente dizer porquê que a fome voltou. Voltou justamente porque houve o desmonte das políticas públicas e com apoio das bancadas do Nordeste, afinal, o presidente da Câmara é de Alagoas e está sentado em cima de cento e tantos processos de impeachment.
A fome veio por quê? Porque você destruiu a legislação trabalhista, a legislação previdenciária. Porque você acabou com a política de valorização do salário mínimo. É uma política deliberada porque justamente as nossas elites gostam de ver as pessoas de joelho. O Bolsa Família provocou revolta porque dava dignidade às pessoas, dava a possibilidade da pessoa quando recebia uma oferta ridícula de salário dizer não. O ódio é que ninguém mais agora ia limpar a sua casa por R$ 10.
Estamos às vésperas de um ano eleitoral. Os votos do Nordeste já estão em disputa. A gente começa a ouvir novamente aquele discurso do nordestino que não sabe votar, estratégias eleitoreiras, políticos prometendo trazer soluções milagrosas para a seca. É um discurso ultrapassado, na sua opinião, ou que ainda cola?
Olha bem, eles vão ter mais dificuldade, né? Porque Luiz Inácio Lula da Silva no Nordeste é um mito. É o verdadeiro mito, não esse mito falso que está aí. É efetivamente uma pessoa nordestina e tem uma identidade enorme com a população da região. Vão ter que inventar muita lorota para conseguir voto majoritário aqui na região. Evidentemente que tem pessoas que vão cair nessas armadilhas. O Auxílio Brasil é claramente um programa eleitoreiro [anunciado pelo governo Bolsonaro depois de acabar com o Bolsa Família]. Depois que passa a eleição, o programa acaba. Quer dizer, um golpe maior do que esse impossível, né? Um estelionato eleitoral maior do que esse, impossível.
Sobre Doria, basta os nordestinos saberem que Doria, quando foi presidente da Embratur no governo Sarney, queria vender os retirantes como atração turística.A eleição do ano que vem vai ser jogada nas mídias sociais. E daí a importância inclusive da criação de conteúdo que rivalize com a imprensa nas redes sociais, onde a grande mídia encontra oposição. Enquanto eles dominam completamente o espectro no rádio e na TV, nas redes sociais eles têm que disputar espaços com outros veículos. E aí a importância de ter canais críticos em todos os lugares.
Já que estamos falando de redes sociais, elas são palco de muitos discursos preconceituosos e ataques contra nordestinas e nordestinos, mas também servem ao revide. Ajudam a reverberar novas representações e ideias sobre o Nordeste, seja nas artes, no jornalismo ou até pela via do humor, como fazem influenciadores digitais. Com esse impulso das redes, estamos conseguindo reinventar como o Nordeste é visto pela mídia e no imaginário nacional?
Infelizmente ainda não. Basta a gente ver o tipo de conteúdo que circula no famigerado dia do nordestino. Que é engraçadíssimo porque é um dia que foi adotado pelos nordestinos, mas ele é um feriado oficial do município de São Paulo. Quer dizer, o dia do nordestino foi criado em São Paulo, pela consciência pesada dos paulistas pela exploração da mão de obra e o preconceito em relação aos nordestinos.
O tipo de coisa que circula nesse dia é o reforço do imaginário estereotipado. Os homens todos festejando os ‘cabra macho’ que são. A história do cuscuz, do bode, do chapéu, do cacto. Se você joga Sertão ou Nordeste, quais são as imagens que aparecem no Google? O sol, causticante, a terra gretada, o vaqueiro, os retirantes, as vacas mortas, as crianças com fome, a casa de taipa.
A gente viu o fenômeno Juliette (ex-BBB). Ela foi pro Big Brother representar o Nordeste, assumiu essa identidade porque ali cada um assumiu uma identidade. E de repente os seguidores de Juliette orgulhosamente se nomeavam de cactos. Ela é uma moça de classe média, duvido que tivesse colocado um chapéu na cabeça de couro alguma vez, mas adotou o chapéu de cangaceiro como representação. Quer dizer, não tem nem ideia do que significou o cangaço para as mulheres. O cangaço significou rapto, estupro, violência em relação às mulheres. Basta ler o livro da Adriana Negreiros sobre as mulheres no cangaço. Aquela visão idílica de Maria Bonita não tem nada disso. Ela tinha que se arriscar muitas vezes para ver a filha.
O problema do regionalismo nordestino é a falta de senso crítico. É que todo mundo assume as coisas sem se perguntar de onde vem? O cangaceiro não pode ser exemplo de masculinidade, porque é uma masculinidade tóxica, agressiva, violenta. Cangaço não queria transformação social nenhuma. O chefe dos cangaceiros queria ser coronel. As principais lideranças do cangaço eram filhos de proprietários de terra, por isso eram lideranças. Antônio Silvino, era filho de proprietário de terra, Lampião, Jesuíno Brilhante. Uma visão idealizada do cangaço serve na verdade para o nordestino que tem um um complexo de inferioridade internalizado, em situação de conflito, lançar a mão dessa macheza como saída.
Imagem: entrevista de Durval Muniz para Cajueira
As produções culturais também reiteram essas imagens estereotipadas? Você chegou a criticar o filme Bacurau, do cineasta Kleber Mendonça Filho, pela representação de um Nordeste rural.
O filme cai no estereótipo. Por quê? Porque o estereótipo é fácil. As pessoas já estão esperando. A imagem que rompe com o esperado, as pessoas vão ter um certo estranhamento. Se você produz alguma coisa aqui estranha, não vai ter essa adesão imediata.
Mendonça Filho é um cineasta que tinha feito filmes maravilhosos, que inclusive contestava esse imaginário em ‘O som ao redor’, ‘Aquários’. Trazia o fenômeno urbano metropolitano no cinema do Nordeste. Aí ele resolve fazer sucesso internacional. Ele quer fazer um filme pra ir pra Cannes e adota o lugar comum, a receita de Glauber Rocha. É o cinema do neorrealismo italiano: atores naturais, a cidadezinha perdida no meio do mundo, sertão, violência, sangue, distopia. Todo o imaginário do cangaço, do coronelismo, do messianismo, todas aquelas coisas. O Nordeste da morte, do caixão.
Eu saí com uma enorme mal estar do cinema principalmente pela reação da plateia. As pessoas vibrando com a cabeça das pessoas sendo estouradas. Isso é terrível. Isso mostra como a sociedade brasileira está doente. A eleição de Bolsonaro mostra o nível de doença da sociedade brasileira. O fascismo não está apenas no governo federal. Fascismo está espalhado pela sociedade brasileira - a intolerância, o ódio, a raiva, o ressentimento,o preconceito, o racismo, a homofobia, a transfobia, a misoginia.
A Cajueira é uma forma de disseminar conteúdos feitos a partir dos territórios nordestinos, que contribuem para a diversidade de vozes e de temáticas no jornalismo fora do eixo imposto. Qual a importância disso na reinvenção da imagem do Nordeste na mídia?
É muito importante. A democracia brasileira sempre será frágil e sempre estará em risco enquanto a gente tiver esse monopólio descarado dos meios de comunicação. O capítulo de comunicação da Constituição de 1988 nunca foi regulamentado, justamente porque os donos de mídia estão todos no Congresso e não têm interesse em regulamentar. E um dos elementos fundamentais no capítulo da comunicação é justamente a regionalização da mídia, o que nunca foi feito.
A mídia brasileira continua sendo uma mídia concentrada, aquela mídia que foi inventada pela ditadura militar para ter um controle, justamente das vozes. Uma empresa de televisão que com o seu jornal chegava a 60% dos lares, isso é uma coisa impossível para uma democracia. Você não tem pluralidade. A internet está se tornando a única alternativa de você furar na prática esse monopólio.
O Nordeste e o Norte não aparecem na mídia nacional ou só aparecem estereotipados. Quando a Globo transmite alguma coisa do Nordeste? Só calamidades para reforçar mesmo imaginário. Quer dizer, os nordestinos, para ir pra Rede Globo, tinham que fazer trabalho de fonoaudiologia para retirar o sotaque. Ninguém sabia que José Wilker era cearense. Eu acho muito importante essa diversidade de vozes.
Que a gente faça com que o Brasil nos conheça mais, porque a forma de combater o preconceito, o estereótipo é o conhecimento
Como podemos implodir representações caducas sobre a região e reinventar o Nordeste?
Desde os meios de comunicação até as artes. Quando eu chamei o meu livro de ‘A Invenção Nordeste de Outras Artes’ é justamente porque as artes tiveram uma centralidade enorme na produção desse imaginário e para desconstruí-lo as artes também vão ter um papel fundamental. Eu fico muito feliz quando o meu livro inspira produções artísticas.
As pessoas têm dificuldade de pensar fora da caixa. E superar esse imaginário - Só São Paulo é que é urbano. Nós não somos. Somos rurais! Vai falar de cultura nordestina, e o rock produzido em Fortaleza não é visto como cultura nordestina, o mangue beat feito no Recife não é visto como cultura nordestina. Cultura nordestina é só o bumba meu boi, o frevo, o maracatu, que são ótimos e têm que ser preservados, mas não pode parar aí.
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